quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Meta






                                                               Meta


            Motel beira de estrada.

          -Amor! Você não acha que estamos precisando apimentar nossa relação?

Andreia corpo nu olhava os carros passar em alta velocidade.

Murilo  em direção a pia (Nos hotéis seu costume é usar a pia mesmo), para, e concorda.

          -Devemos tentar o que, por exemplo?
          -Chega aqui!

 Murilo deita na cama, Andreia senta por cima:

          - Filma tudo!
          -Tudo?
          -Nos mínimos detalhes.
Fazem sexo novamente.  Murilo segue o escript: Dá close, tapinhas,  tudo.

          - Agora esquece o aparelho aí.
          -Mas, é um Iphone 6 e custou os olhos da cara!
          -Depois você compra outro, deixa de ser muquirana! Vai!

Murilo joga o celular em um canto.

                                                                              Fichas

O casal que vimos sair agora, pertencem a família  de Duas Cancelas, pequena cidade no fim do mundo.
Andreia é professora primária, tem dezoito anos, pinta o cabelo de loiro claro, acha o “ó do borogodó “ser morena, mas as sobrancelhas não mentem, e é candidata a miss Cancela com chances, é  extrovertida, piolho de academia, corpo malhado e trincado de músculos.

Murilo é Contador das cinco firmas de laticínios da cidade, não gosta de malhar, diz até que a barriga dele é um “calo sensual”, e também fala que “mulher não gosta de homem, gosta de dinheiro, quem gosta de homem é viado”.
Mas tarde tomando café:

          -Não entendi você! Fazer-me perder meu celular!

          -Murilo deixa de ser bobo! E quem iria vazar nossos vídeos para a internet! Hem! Você por acaso?
Ele toma todo o café da xícara e vai para o trabalho.

                                                                       Vírus

Não deu outra. Quem achou o celular não contente em ver os vídeos,  - atualmente não tem graça se não compartilhar, fez upload em vários site no exterior e em duas semanas viralizou.
Já no trabalho Murilo notou alguns colegas olhando-o  de meia jota.

 Cancela ficou em polvorosa. Não era para menos, uma filha da cidade, andando de boca em boca por aí, na maior pouca vergonha.
Nas praças e bares não falava noutra coisa. Onde tinha um grupinho o tema não era outro:
          -Nossa menina, tu viu?  Não! Então veja com teu próprios olhos!
          -Quem diria hem! Parecia uma santa! Santa do pau oco!
          -E como fica a disputa do miss Clube Cancela?
          -Menina, queriam tirar ela, por que você sabe,né, para ser miss do clube de Cancela tem que ser virgem e pura!
          -Pois é!
         -E Murilo hem! Todo sério quem diria! E o gordinho é fera! Você viu que enorme!
         -Pois então! Vamos ver o que vai acontecer!

Noutro grupo de homens:
         -Olha aqui! Que linda! Não tem cara de gato?
          - Hum! Ah! Essa gata lá em casa!
          -E os pais uns bananas! Achavam que a filhinha era inocente!



                                                                  O baile

Estava uma noite agradável. O salão encontrava-se superlotado. Muita gente  de cidades vizinhas devido a repercussão dos vídeos. Todo mundo queria ver Andreia, desfilar. Todas as autoridades locais já sentadas, o prefeito, o juiz, vereadores, comerciantes etc e etc.
A banda tocava sucessos dos anos setenta. Jovens dançando na pista. Como de costume, no intervalo do baile começou o desfile. Pela ordem alfabética entrou Amanda filha do prefeito. Usava um vestido longo branco com pedrarias. Foi de um lado para o outro sem grandes aplausos a não ser a família. O prefeito gritava:

          -Viva a família!

Chegou a vez de Andreia. Vestia um vestido vermelho. Quando desfilou o burburinho foi grande. Muito aplaudida até a saída, quando voltou o rosto e sorriu. O prefeito fez certa observação:

         -Próximo ano vamos proibir entrada de quem não é sócio. E engoliu uma dose de uísque.

As outras desfilaram sem muita euforia. Eram dez.
Chegou a hora do desfile de biquíni. Os rapazes haviam colocado as suas cadeiras em frente a passarela e muitos sentavam-se pelo chão.
Quando Andreia desfilou, o clube quase veio abaixo, de grito já ganhou e chuva de confetes.
O baile continuou enquanto os jurados chegavam a um acordo. Houve discussão acaloradas e passaram um papel ao locutor com o veredicto.

          -A miss do clube Duas cancelas deste ano, começa com a letra A...
O povo aplaudia e gritava.
É sem sombra de dúvida uma bela menina! Amanda!
O clube quase veio abaixo de vaias.


                                                                intimidade

Andreia e Murilo se beijavam no pátio. Toca uma música romântica.
          -Nossa! Bem! Você estava muito gostosa. Foi puro preconceito!
          -Viu! Eu ganhei pelo os aplausos você viu? Isso é que me deixa feliz!
          -Todos os homens aqui, te desejavam!
          -E meu advogado já está trabalhando a todo vapor. Vou processar o motel e toda pessoa que vazou nosso vídeo. Essa cidade hipócrita e cretina! Quem garante que as outras eram virgens? Quem?
         - Mas quem vazou não fomos nós?
         -Mas a ideia era essa, seu bobo! A meta era ficar famosa e ainda por cima ganhar uma grana.

Beijam-se longamente com mil olhos apreciando suas intimidades.





quinta-feira, 28 de julho de 2016

Anotações




                                         Anotações


As “miudezas”, Deus!  Inerentes ao ser humano e ou animais irracionais.

 Das necessidades:

1.       Comer- Necessário para o corpo. Devoramos quase tudo. Predadores.
2.        Defecar (  cagar, obrar, fazer um barro etc.)- Tudo o que entra sai. Formas e cheiros.
3.       Urinar ( fazer  xixi,tirar água do joelho, esgotar), Marca território.
4.        Conversar (fofocar, trocar impressões, confabular etc.). Comunicação.
5.       Dormir (Tirar uma soneca, tirar uma palha, nos braços de Morfeu etc.) Vida especial.
6.        Acordar (levantar-se, abrir a pestana, consciência etc.)
7.        Sonhar (Um dia ainda nos vão proibir), Lembranças e imagens.
8.        Sexo (com amor, sem amor, grátis, pago). Cinco sentidos.
9.       Respirar (Está cada vez mais difícil). Troca de gazes.
10.    Sorrir (As hienas sorriem também). Falso e verdadeiro.
11.   Chorar (O crocodilo chora degustando a presa, nós choramos de felicidade ou de tristeza... De nós mesmo.

  O homem é um ser social?

 Sociais são: as formigas, as abelhas, as bactérias, os vírus e insetos em geral.


quinta-feira, 21 de julho de 2016

História em três atos

 
                                                   


                                 História em três atos



 Cadernos esparramados, copos americanos de borco numa bandeja de plástico, abridor pendurado no barbante, gaveta com algumas moedas à mão, notas maiores no fundo sob uma caderneta amarela, pia com alguns copos sujos, balcão de madeira manchada por todo tipo de bebidas, principalmente a cachaça, a mais vendida indiscutivelmente, depois o chicle que tem figurinha e em terceiro as bolinhas de gude.


Dois engradados de cerveja lhe serviam de acento, pernas balançando, mascava chiclete, de vez em quando uma bola vermelha se formava na boca pintada de batom anil, outras estourava num ploc- ploc e ela a garota dos olhos azuis, voltava a enchê-las soprando, nos deveres de casa.
Na mão uma caneta esferográfica, tinta azul, escrevendo em letras discursivas nas pautas, o rádio pendurado num prego na parede na entrada do WC. Antigamente escrito “mictório” podia-se fazer o número um, depois com a melhora do estabelecimento aumentou-se a área e colocou-se um vaso e agora se podia fazer também o número dois.

 O trabalho aumentou devido à educação e intestinos dos clientes que faziam obras de cores, tamanho e cheiros dos mais variados e absurdos possíveis. Era responsável  pela limpeza. Usava vassoura, rodo, sabão, detergentes, creolina, toda parafernália para se ter um bom ar.

 De mictório passou para WC. Foi num filme que ela viu e gostou. No filme uma loira linda entrava em um bar, beira de estrada, empurrava uma porta que ficava balançando. Essa cena chamou-lhe a atenção. Estava procurando melhorar o ambiente e escreveu “Ambiente familiar”, depois que alguns fregueses quiseram se engraçar prá ela.

 Estudava nas folgas e era no balcão que fazia os deveres de casa. Era a única filha do dono da birosca, que ficava na subida do morro do biscoito, no início da favela do urubu. Pensava no futuro.
O pai, Seu Francisco, vindo do Nordeste, fugindo das secas, montou aquele negócio depois que foi mandado embora da fábrica, tempos difíceis aquele, a classe política não saiam das manchetes, tempo de propinas, corrupções e todas as mazelas inerentes á democracia. Tem país que se pegar um camarada roubando cortam-lhe a mão dizia o pai quando discutia com alguém, e outros até que tem pena de morte. O ruim é que nesses países não se vive em liberdade, como viver assim, presos como passarinhos em gaiolas?

O caso foi que as firmas estavam contratando cada vez menos, e numa leva o pai ficou desempregado e aproveitou o FGTS por tempo de serviço, comprou balcão, freezer, conjunto de mesa, centenas de copos americanos, sinuca e estufa.   Fizemos um puxadinho na frente, fritamos Pé de galinha, moelas, fígados, coxinhas, quibe, pastel de carne, de queijo, todo tipo de frituras, afogados em óleo.
Agora eu tentava organizar o lugar, ficar bacana, apresentável, mesmo sabendo que tinha que cortar gastos, a crise estava braba, jacaré nadando de costas, por sinal, no banheiro o papel  eram pedaços de jornais. Um absurdo achou ruim com o pai, comprou papel higiênico, assim não pode e a categoria do lugar? Hem! Hem! O pai disse que era gasto supérfluo, mas ela bateu pé, tem certas coisas que não pode cortar, e assim ela tomou frente para melhorar o lugar.

Não pai, isso é economia burra, vai contra o negócio, e o pai ouvia, afinal era a única que estudava, a mãe era faxineira a noite nos prédios vizinhos, tinha a sua clientela, tinha feito até no computador da filha um cartão de visitas, Fatinha, faxinas em geral, honestidade em primeiro lugar.

Tinha notado com essas pequenas mudanças a melhora, além do Zezinho pé de cana, de fiinho magrelo, jogador de sinuca, do chapa de caminhão Expedito, de Claudio apontador de bicho, do aposentado da coletoria seu Joaquim, os flanelinhas Paulo e José, agora marcava presença um fotógrafo e um amigo dele que não tirava os olhos de cima de mim.

Ele que deu a dica, faz assim coloca alguns copos americanos no freezer, e serve os fregueses. No meu negócio faço assim.  Vão gostar. E todo dia à tarde sem falta eles chegavam, sentavam-se à mesa do canto, pediam o de sempre, uma porção de fritas, e uma loira gelada.

Depois ficavam fazendo perguntas, onde eu estudava, quantos anos tinha, quantos irmãos, se gostaria de ser modelo, tinha  jeito sim, era esguia, eu ria, e voltava para o balcão fazer meus deveres.
Levei as fritas. O fotógrafo via algumas fotos enquanto o outro me observava. Ele parecia legal. Usava um tênis de marca, bermuda jeans e óculos da okley. Quando nossos olhos se encontravam ele sorria.

“A presidente não tem culpa, ela é honesta, não provaram nada contra ela... “Dizia Feiinho magrelo enquanto mirava uma bola sete.

“Não tem culpa, mas acontecia tudo nas barbas dela”, gritava seu Joaquim aposentado da coletoria.

 A bola saiu lisa e lenta girando no pano verde. Tocou levemente na tabela do canto e ficou cai não cai. Os flanelinhas vibraram. Feiinho bateu o taco no chão. O chapa passou giz nas mãos, giz no taco, debruçou sobre a mesa, balançou três vezes e encaçapou.

“A culpa é desse velho nojento! Funcionário público federal chupadou das tetas do governo! Isso é que você é!  Um Mamador! Um Coxinha! Pilantra!

“ E você é um bolsa família, vermelho, comunista! Um miserável!”
Feiinho levantou o taco.

Os Flanelinhas seguraram um de cada lado.

“Deixa disso! Deixa disso! A verdade é que só tem ladrão! Tinha é que implodir aquele congresso! Aquele antro!”.

Acalmaram-se. O chapa só observava em pé debruçado no taco. Feiinho tirou dez pratas e jogou na mão dele.

Meu pai já disse que não queria jogo de aposta aqui! Sempre dá briga!

A culpa é desse velho... Seu Joaquim quis levantar...

Se brigarem novamente não vai ter aposta...

O jogo voltou. Silencio. Só as bolas caindo, rolando, giz, o radio, fumaça, descarga, tampinhas, olhares e olhares.

Eu agora usava batom,  cabelos penteados, unhas feitas, menstruei semana passada. Foi um sufoco. Umas dores, cólicas. Bicho estranho a mulher. Passei a usar sutiã por que o amigo do fotógrafo não tirava os olhos. Eu assim, meio que gostava.

Foi no sábado. Eles chegaram, pediram o de sempre, e quando abri a cerva, o fotógrafo perguntou se eu não queria tirar umas fotos de teste. Eu disse que ia saber de meu pai, eu era menor de idade, eles falaram que não era necessário, que os pais temem pelo sucesso dos filhos,  que era somente um teste,que se ele mesmo não tivesse saído do interior, batalhado, hoje não seria um publicitário de sucesso, e isso e mais aquilo, e foi desfiando uma conversa sem fim e eu para não ser rude disse que ia pensar e fui para o balcão.

Mas essas coisas são danadas, o ego, a satisfação de ser reconhecida, adorava Self, postava em tudo que é lugar, face, whatsApp, blogs,  é como cupim em madeira. Vai comendo por dentro.
Fechei o bar mais cedo, àquelas horas, vai ficando mais perigoso, fui guardando as mesas, lavando os copos, empilhando os tacos, as bolas, lavar o banheiro, tocos de cigarros, cabelos no branco do vaso, respingo de urina, de fezes, uma imundície, descargas, finalmente apaguei a luz, o cupim, madeira fraca, sonhos, o ego, as amigas da escola, a vida melhor.

                                                                             *

Foi numa dessas voltas contumaz. Gosto de andar pelas favelas a cata de material. Escolho a dedo. Os clientes sempre querem novidade. Aí que eu a vi, estava abrindo o portão de correr, um shortinho curto, uma bunda empinadinha,  gostei. Prometi.  Vai ser minha e de mais ninguém. Terei que chegar com jeito, ela é muito nova, talvez virgem não se sabe. Passei de volta depois, sondando, ela estava no balcão, pensei entrar, desisti não, na próxima vez eu entro, deixa está, e acelerei.

Na segunda vez levei meu parceiro. Ele sabe como atraí-las. Encostei o carango rebaixado, sonsão batendo, as cornetas enchiam a traseira,  junto as caixas ,faziam Tum Tum Tum, ah! Ah! Quase levantava o barraco. Desliguei. O pessoal saiu á janela. Ela ficou olhando desconfiada. Entramos e pedimos uma bebida. Ela veio com aquele shortinho, tudo espremendo, a bunda, a barriga, dividindo.
Discutimos  seus dotes eu e meu parceiro. Ela ficou no balcão olhando de longe. Ela não tem irmão. Menos um empecilho. Pedimos a segunda, e umas fritas. Os peitos pequenos, apontando na blusa de malha. Saboreei a cerveja. No ponto. Foi aí que meu parça iniciou o plano.

Você não quer  ser modelo, tirar algumas fotos, teste, você tem jeito, é esguia, olhos claros e quem sabe a próxima Gisele Bichem, essas coisa e os olhos dela brilharam, eu vi, suspirou fundo, quando ele disse, que modelo viaja muito, conhece outros países, outra vida. Aquilo foi como um raio em sua mente, quase entrou em transe.

Aqui eu sorri, ela baixou o olhar, disse que ia falar com o pai, me apresentei, Ricardo é um prazer, apertei a mão dela, fria, fugidia, retirou-a apressada, pensei: vai dá trabalho, a danada, mas paciência.
Nisso começou uma discussão lá nos fundos. Um velho e um jogador de sinuca. Pedimos a conta. Pagamos e ela pediu desculpa, nada, somos acostumados e saímos.

                                                                            *

Logo depois que saíram fechei o bar, fui falar com meu pai. Minha mãe ainda não tinha chegado. O senhor não pode deixar apostar aí, quase deu briga! Eles rosnam, mas não brigam, os conheço de muito tempo disse meu pai. Eu sei disso, mas pega mal né? Quero fazer esse bar de respeito!  Agora que passou a ser mais bem frequentado.

Mas meu papo é outro! Uns caras aí querem me fotografar, dizem que posso ser modelo, ganhar muito dinheiro, deixou o cartão. Veja. Ele olhou desconfiado, pegou o cartão, sei o que eles querem muito bem! Fique longe deles! O senhor é muito desconfiado, fique sabendo que eles são muitos educados e, além disso, quero estudar, formar, ter uma profissão.

Fiz minha cama para dormir. Demorei pegar no sono. Fiquei desfilando nas passarelas pelo mundo á fora. Lá pelas tantas apaguei, e só agora acordei com o canto do galo. Saltei da cama, desci para o bar, varri tudo, ajeitei as mesas, liguei o rádio, o locutor gritando bom dia para todos, fazia festa, só assim levantou minha moral, fiz uma oração, acendi o fogo, fiz o café comi com alguns biscoitos, enchi a frigideira com óleo, quando esquentou joguei algumas coxinhas , uns pastéis e fui colocando um a um na estufa.

O padeiro trouxe os pães, coloquei na vitrine, assinei a nota, veio o carro da coca-cola, deixou os refrigerantes, depois o da cerveja. Quando tudo acalmou depois que Feiinho chegou, seu Joaquim, Os flanelinhas, o chapa de caminhão, as bolas começaram a rolar, entrava cada uma em um buraco e a tarde ia chegando, o sol caindo, as sombras aumentavam, diminuíam, desapareciam voltavam novamente e caia a penumbra as luzes acendiam e o fotógrafo e Roberto chegaram.

                                                                                *

À noite, as estrela brilham pelas frestas das telhas de zinco. Dormiu pesado, é tanto que ainda não tinha tirado a água do joelho. Abriu os olhos, se esticou no colchão, espreguiçou-se.  Colchão de molas ensacadas, dizia o prospecto das casas baia. Comprou em dez vezes.

 Uma aranha corre no teto branco, do outro lado, perto da lâmpada de quarenta velas, pendurado num fio preto, um pequeno mosquito mexe as patinhas.
 
Interessado empurra a coberta e a unha do dedão agarra na linha do cobertor Paraíba. Isso dar-lhe aflição. Quase grita, mas aguenta calado, observando a cena.

Na vizinhança o portão range. Roncos de motor de carro. Uma Kombi. Depois um fusca. A aranha anda de lado, devagar, fingindo. A linha no lasco da unha. O mosquito quieto. A sobrevivência. Jogados a própria sorte. Caça e caçador. A aranha salta. No alvo.  Faz um novelo. Fim do ato.
 Levanta-se e calça os chinelos. No vaso aponta o jato sobre um pelo escuro.  Porra quase não acerto. Sacode.  Puxa a descarga. Levanta o pé e puxa a lasca de unha.
Lava o rosto. Escova os dentes. O dente deu para doer duma hora para outra. Foi ao dentista. Tem que cuidar! Tem que... O PH, a saliva, gengiva, céu da boca, aftas, dentina, esmalte, açúcares... As bactérias. As invisíveis bactérias... tudo...tudo  jogando contra.

 É foda! Tudo jogando contra.







Domingo




                                                             Domingo

Antes mesmo de o galo descer do poleiro, eu já tinha lavado o rosto, escovado os dentes, preparado o embornal:  Um caderno de cinqüenta folhas, aproveitado do ano passado, agora com trinta,  um toco de lápis sem ponta, um apontador, uma borracha de duas cores, uma para apagar os erros de grafite a outra para apagar tinta, uma tabuada, abecedário, duas bolas de gude, pião com a corda enrolada e um estilingue.

A escola funcionava na casa de Francisca temporariamente, a da prefeitura tinha caído, parece que usaram materiais impróprios, enfim, quem dava aula era sua mãe, Dona Elvira, a filha tinha pegado barriga de um viajante, vendedor de fumo, não valia nada a bisca, de modo que não assumiu, caiu no mundo o safado, que se fosse filha minha, eu pegava o traste, mas enfim a barriga estava grande, em estado interessante, pelos dias, de modo que, a velha assumiu a cátedra e era muita rígida.

 No primeiro dia, quando sentamos,... hahahaha! Pausa,  Quando sentamos no banco que ficava encostado a parede...  Todo o reboco, mas todo o reboco mesmo veio abaixo.  Ficaram a mostra os tijolos nus. Gargalhada.  Menino, no dia...  É mesmo que eu esteja  vendo agora, ela ficou pálida, mesmo sendo daquelas italianas vermelhas, igualzinha galo índio... hahahaha! Deu uns gritos, perfilou todos nós em fila,  uns dez alunos mais ou menos, e encheu a gente de bolos de palmatória.

Para vocês entenderem...  Maria grita a empregada... Traz-me aí a palmatória. Tá encima do guarda roupa. Vejam! É de madeira de lei, na ponta arredondada, para pegar toda a extensão da mão. Todos pegam. E tinha família que, além disso, colocavam prego para o castigo ser maior.
E essa nova prática de educação em que consistia uma verdadeira tortura como ajoelhar em grãos de milho, régua na cabeça, bolos de palmatória e beliscão, segundo nossos pais, estavam surtindo o efeito desejado, educar nossas feras, diziam.

E assim com essa introdução a velha ganhou nossa antipatia, quando ela disse que a partir daquele dia ia domar-nos, vou torná-los animais domésticos ditos gritando brandindo a palmatória, às vezes batendo na mesa de jacarandá, olhos, faíscas e raios. Uma verdadeira bruxa.

Vale dizer que desde tenra idade, nós éramos criados livres, os pais ocupados com a vida, cidade pequena, nada a fazer eu pensava que o estudo não tinha lá sua importância, queria logo crescer, montar um negócio, ganhar dinheiro, eu achava que a gente devia aprender só o necessário, na minha cabeça era plantar colher vender e isso não carecia de escola, era só prestar atenção a natureza, que os pais faziam a maior besteira da vida colocar a gente pra sofrer preso em quatro paredes a aprender símbolos e letras desnecessários no futuro. Pois bem!

Na volta para casa fazíamos roda de pião, bola de gude, caçava passarinhos no mato, e principalmente aula de educação sexual.  Sim! Nosso maior interesse era isso. A sala era o sítio dos paus ferros, que entrávamos saltando cercas e víamos os cavalos, os cabritos, galos, perus, gatos, todos os bichos nos prazeres mundanos.

Depois íamos tomar banho de rio, todos pelados, sem pudor, éramos crianças, quase índios em descobrir os recantos da região.

Ao chegar a casa Mainha que não era nenhuma boba, conhecia os filhos que tinha, passava a unha levemente na nossa pele, se ficasse russa, era sinal que tínhamos passado no rio e ela pegava a gente pela orelha, assim ó, segurava a própria orelha sorrindo, vais tomar doze bolos para não mais fazer isso! Pensa que eram só doze? Neca de Capibaribe! Eram vinte e quatro contados lentamente um a um! Aprendi a partir daí a passar óleo de cozinha na pele quando chegava.

Ah! Lembrei de uma situação. No dias das mães a professora pediu que todos fizessem uma frase, numa cartolina azul. Quando chegou minha vez toda a família reunida, esperando algo típico de um escritor vejam a frase:

Mãe é mãe, por isso eu amo ela!

Todos riram. Só Dona Neuza, Mainha, esboçou uma cara de choro emocionada que estava. E ficou aplaudindo de pé. Mãe é mãe, né?

A partir daí ganhei a alcunha de “Moela”.  Não gostei. Devido a isso estourei o supercílio de Nonato, aquele que é advogado, sim, agora é promotor lá em... Falta-me a memória...quebrei um dente, de Toninho, esse é comerciante, tem um mercado grandeee!  La pras bandas de Pernambuco, gente boa,  ficou rico... Também arranhei as costas de Afrânio, kkkkk, esse é professor lá na capital, funcionário público, ganha uma merda de salário. Rarararaá!   Até eu acostumar fiz bastantes arruaças, por que eu era um bom lutador, sabe? Não perdia nenhum filme de Santos o mascarado ou de cowboy, nem de Bruce Lee.

Devido a isso, de querer ser um herói, quebrei o braço, esse aqui, o esquerdo, tentando pular de galho em galho como fazia Tarzan, o homem macaco.

 Cicatrizes  tenho em tudo que é lugar, aqui no queixo, levanta o queixo, (um salto ornamental que dera errado), aqui ó, no supercílio (brincando de guerra com bodoque), aqui no lado esquerdo da barriga, levanta a camisa, (apêndice), nos joelhos, tudo estropiado, (atropelado pelo jegue), no dedo indicador, ó, (uma pedra de estilingue), ali no dedão do pé esquerdo (imprensado num portão de ferro).
 
Mas no fim num sabe, Eu acho até que eu apanhei foi pouco. Gargalhada. Tosse. Tosse.
         

          - Conta mais, vai!
          -Crianças! Vão brincar! Deixem seu avô dormir agora!



quinta-feira, 14 de julho de 2016

Arte em cinco minutos

                                                         Arte em cinco minutos


Vou de encontro ao sinal. Paro. Vermelho. Freio enquanto troco a música no aparelho de som. Sou o da frente. Pelo retrovisor vejo atrás uma fila longa de carros se formarem. Súbito um rapaz, uns 17 anos, sai de um canto e faz malabarismo com argolas. Uns olham outro nem. Tudo cronometrado. Torço para que dê certo. Que não caia. Que... Que... Uau! Cronometrado.  Ele vem com o boné recolhendo as dádivas. Verde. Sigo em frente que atrás vem gente. A vida continua.

terça-feira, 12 de julho de 2016

À caminho do éden

     
                          

                                           À caminho do éden


O velhinho sentou-se na cadeira, miúdo e só, frente à funcionária pública, de óculos de grau, estantes entupidas de pastas guardadas em ordem alfabética, cheiro de fungos, de mofo, trouxe o papel que faltava..., disse ela, Ele ajeitou-se na cadeira, olhos lacrimosos, as mãos, o pescoço, enfim, toda a pele marcada pelo tempo, ia mostrar os papéis quando ela disse,um instante senhor!, Pegou o telefone. 

Aquele ambiente já fazia parte da vida dele. Já iam lá mais de seis meses carregando papel, documentos, fotos, xerox, elásticos, carnês, nada consta, atestado de vida e até de morte.

A mulher ri ao telefone, galhofa com a outra pessoa através do fio, despede-se e A mulher calejada pelo trato com o público, ficou séria, deu um riso amarelo, desculpou-se com o velhinho, pegou a papelada, deu as costas, ele aproveitou e enxugou o nariz e os olhos, deram para minar água, a mulher retirou uma pasta vermelha, bateu a poeira, olhos de cão perdigueiro, passou a  papelada um a um,  dedo na língua dedo no papel, e foi paginando lentamente. Espetou o último papel que o velhinho trouxe na pasta, balançou a cabeça e andou para o birô, talvez até com uma alegria reprimida, Sr Marcolino de Andrade Silva, é o senhor, não!,o velhinho abanou a cabeça esperançoso,  riso sem dente, formigamento no peito talvez emoção, ou a tosse que adquirira no ultimo inverno, aquele frio horrendo.

 A mulher de óculos continuou, aqui consta que o senhor foi pedreiro de acabamento não?, e o velhinho consentiu com um aceno, fui sim senhora e dos bons, agora o intestino roncou, e ele talvez ficou um pouco rubro de vergonha, se a mulher ouve, ele era extremamente tímido,saiu de casa por volta das três da manhã, pegou o metrô, talvez lotado, hoje em dia  ninguém dá acento a velho, e veio uns dez quilômetros balançando em pé, segurando no estribo para não cair, não tomou o café preto de costume, comprou na birosca perto de casa biscoito polvilho, enganar as tripas, aquilo  na boca derrete num segundo, o restante da viagem até ali veio capengando a pé pelas calçadas, verdadeiros obstáculos, para velhos e deficientes.

Senhor Marcolino, sinto muito, mas ainda falta esse documento, a mulher de óculos anotou num pequeno papel e entregou ao velhinho banguela, favor trazer a Xerox reconhecer firma, e tudo se resolverá creio eu,  O velhinho esticou o braço trêmulo, quase sem acreditar, a mulher retirou a mão rapidamente para que não houvesse toque, nunca se sabe esses velhos não costumam tomar banho, e tem cheiro de naftalina.

O velhinho pegou do papel, olhou como não acreditasse, mil vezes já vim aqui, a senhora da outra vez falou a mesma coisa,  falou quase inaudível, esperançoso,O que o senhor disse? a mulher de óculos tirou os óculos para olhar o velhinho pela primeira vez, nada não!, ele completou receoso,e dobrou o papel na mesma dobra que de tanto dobrar se estava se rasgando e  o colocou com cuidado no bolso.

Senhor Marcolino, não é minha culpa, sim!, a mulher fez questão de falar alto, continuou, faço parte de uma grande máquina, uma grande engrenagem sou apenas uma pequena peça já um pouco enferrujada. O velhinho não levantou os olhos. Ela a olhou com desdém, próximo!, Gritou por cima para que ele o velhinho banguela desse  a vez o mais rápido possível a outro, a fila anda, e outro velho aproximou-se. Os dois velhos  cruzaram-se de passagem um não teve coragem de olhar nos olhos do outro, a derrota, a mulher de óculos pegou o documento do outro velho, fez as mesmas perguntas, carimbou, pediu os mesmos documentos, ouve-se até um ranger de máquina enferrujada, ela tossiu, uma tosse seca que ecoou pelo salão, o velhinho banguela ainda olhou para trás, na esperança de ser chamado, mas só o silêncio, o silêncio ruidoso das máquinas e do metal frio.

Na calçada viu a fila dobrando a esquina e camelôs aproveitavam para vender água, biscoitos e outras guloseimas. Na longa fila, velhos e jovens com alguma deformidade, já não serviam ao sistema seriam encostados.  Trabalhei a vida toda na mesma firma e quando quebraram, descobri que eles não tinham recolhido o tributo. Muito azar eu dei! Ele ouviu isso de um homem sentado numa cadeira de rodas, ao passar.   Falava com um jovem negro, que tinha um toco no lugar das pernas. Viera rastejando até ali. Vou fazer perícia e se Deus quiser eles me aposentam, disse.

Aposentar é um verdadeiro jogo, pensou. Um jogo de xadrez que aprendeu jogar quando era menino. Onde o pião é sempre sacrificado, em defesa do rei ou da rainha encastelado em suas torres. Os bispos andam nas diagonais com suas batinas.  Vidas retas. Come somente nas diagonais e em quaisquer direções por isso deve-se ter o maior cuidado com eles. Já o cavalo salta em forma de ele. O peão coitado, anda uma casa por vez. São sempre oferecidos em trocas.

Na longa calçada ouvia  somente o toc toc da sua bengala. A barriga recomeçou a roncar. Senhor Marcolino, não pode ficar muito tempo de jejum, dissera o médico do SUS. Um jovem médico formado para fazer o  gosto e prazer da família. Tratava os outros de qualquer maneira. Buscava o status da profissão. Agora trabalhava num hospital de periferia. O senhor deve comer no mínimo três vezes ao dia, ele dissera ao velhinho. Agora, segundo os exames, o senhor é diabético e tem pressão alta. Só faltava essa! Pensou o velhinho.
Estou encostado há um ano e luto esse tempo todo para que eles me aposentem. O medico olhou os exames em silêncio. Aquele assunto não lhe dizia respeito.  O senhor agora só precisa se alimentar melhor e de repouso. E tudo se resolverá, tenho certeza!  O velhinho levantou-se, e saiu andando lentamente. Doentes por todos os cantos. Alguns até estirados pelos corredores.

 Alimentar três vezes! E repouso! É o meu desejo. Mas como fazer isso com o salário de fome que ganho? Se não cato papelão na rua como fazer? 

 Subiu a rua transversal.  Árvores frondosas dividiam a pista. Carros trafegavam velozes e furiosos. Parou na esquina. Inspirou longamente. Encostou-se num muro  protegido por cercas elétrica. Olhou através do portão de ferro fundido, coisa boa. Admirou a arte. Um rosto de um anjo com uma espada na mão. Bela construção. Do fundo saiu um pastor alemão  e veio rosnando em sua direção. Tinha pelos brilhosos e bons dentes. Ela não tinha. O pastor latiu. Abriu a bocarra mostrando os caninos e a língua rosada. Bem tratado, é o melhor amigo do homem!
O portão elétrico começou a se abrir. O segurança  sinalizou para o patrão e ele pisou nos freios e as lanternas acenderam. Vermelhas. Falou alguma coisa olhando para ele. Mediu-o de longe.  Um velho inofensivo. O carro preto passou, acelerando. O portão fechou e ele ainda deu tempo de vê uma fonte caindo aos pés de uma estátua. O jardim era florido.  Tomou fôlego e foi subindo a rua comprida, cheia de árvores e casarões frios. As plantas deixavam as paredes cheias de musgos. De fora, só se via a ponta dos telhados dos casarões.  A primeira vez que passou por ali.  Fez a escolha. Polvilho ou passagem. Arrependeu-se. Sentia uma fincada de lado. Colocou a mão, devia ser a maldita hérnia. O doutor nem me olhou! Muito menos me tocou! Como saber o que eu tenho? Uns moleques sorriram quando viram ele falando sozinho.

Durante o percurso viu a transformação da paisagem. As ruas antes largas e asfaltadas com excesso, agora curvavam e estreitavam-se como minhocas, até não terem o saída. Esgotos a céu aberto, barracos de madeiras, fios entrelaçados, postes, cachorros vira latas, latas de lixo revirados, pipas no céu azul, choro de criança, gritos, estrondo, alaridos, capim gorduras, muros nus, fumaça, tijolos a vista, pedra, pau, cocô, urubus, córregos sujos, cheiro de podre, becos lúgubres.

Empurrou a porta do barraco. O vira lata “pudim”, abanou-lhe o rabo. Sai sai, deixa eu entrar, alisou com carinho o focinho do bicho, os olhinhos pretinhos, seu sapeca! Seu sapeca! Fazia uma voz estridente e de criança. O cão deu um pique lá fora, girou em volta de um bambuzal e voltou correndo para ele. Seu Sapeca! Seu sapeca!
Requentou o café preto  e tomou um gole pausado, esticou o olhar pela janela, bem longe, o mundo, o mar e um barco indo contra o horizonte devagar. A lua brilhava um prata metálico. Tirou uma lata onde guardava as moedas. Colocou na mesinha de cabeceira. Pegou uma pasta enrolada e abriu sobre a mesa. Toma outro gole de café. O bucho parou de roncar He! He! Pegou o documento que precisa e o beijou. Agora eles... Sim e sim... Não vão ter desculpas! Bastardos! Pegou restos de comida  de uma panela e chamou pudim. Ele veio abanando a cauda e enfiando-se por entre suas pernas. Come com sofreguidão. Ele pega os documentos junta com as moedas e coloca dentro de um saco plástico. Dá um nó cego. Olha pela janela. Fica olhando até dizer chega. Deita no estrado. Demora dormir. Esta noite sabe que vai ser comprida. Sirenes tocam: de policia, ambulância, bombeiros, latidos, galos, tiros, tiros, mais tiros, grilos, grilos...A noite se  adensa.

Acordou clareando o dia. Ou o dia encontrou-o desperto. Requentou o café e dá um bons  goles. Lavou o rosto na bica. Defecou. Não gostou nada das cores de suas fezes. Tinha duas raias de sangue. Todas empoladas, parecendo de cabrito. Puxou a descarga. Vou falar com o doutor. Ainda as vê saindo pela fenda da parede e ganhando as grotas e chegando a algum lugar lá para baixo. Que tudo se transforme em merda!
Soltou pudim. Saiu e encostou a porta. Pudim o seguiu saltitante  até o inicio do calçamento onde fica o ponto de ônibus. Dali ele gritou para voltar. O bicho o atendeu e ficou bem num alto no meio do capinzal olhando de orelha em pé. O onibus encostou cheio. Todos com cara de sono, noites mal dormidas. Cumprimentaram-se como se fossem da família. A negra gorda e seu filho de colo. Todo mundo já cansou de saber o que ela fazia. Deixava toda manhã o menino na creche e ia trabalhar numa casa de família, tomar conta dos filhos dos outros no centro. Do dela o mundo tomava. Gente Chic ela sempre dizia. O rapaz de boné era padeiro. A moreninha peituda fazia ponto na praça da estação.  E o senhor seu Marcolino, já conseguiu a aposentadoria? Ele olhou devagar primeiro para o menino, conferiu no bolso o documento, Que nada!, Pediram mais um documento. Diz que é o último, vamos ver! Ela juntou as mãos em prece, Tomara seu Marcolino Tomara! Só a gente sabe o quanto que o senhor trabalhou e ainda trabalha nos seus biscates! Deus é grande! Deus é grande!

O ônibus desceu a encosta. Ainda estava escuro. Passaram postes, casas, casebres, casinhas, bangalôs, comércios abrindo as portas, biroscas, restaurantes, pontos cheios, gente voltando, mais postes, pontes, morros, luzes e luzes.

No asfalto a pista dupla. O movimento aumentou. Carretas, carros pequenos ônibus lotados, parada, saída entra gente sai gente de todas as cores e cheiros ponto final. Desceram. Tocou no bolso para confirmar o documento e as moedas.
O senhor quer uma Xerox, autenticar e reconhecer firma? Perguntou o garoto na papelaria. Sim! Ssim! Quanto é, por favor? O garoto fez a conta de cabeça. São sete reais e setenta e cinco centavos.

Olhou no saco plástico. A conta do bolso. Mais um dia com fome, pensou. Pagou o garoto e pediu para colocar tudo num envelope. Viera subindo a rua até o escritório da mulher de óculos. Chegou bufando. Ladeira e tanto. Pelo menos não preciso mais pegar a fila lá fora pensou. Já sou veterano de guerra, sorriu.Tirou a senha. 75. Que coincidência! Meus anos, sorriu. Sentou-se no banco. Falou para outro velho sorrindo. Pelo menos aqui é na sombra. Ele estava de bom humor hoje.O outro confirmou com a cabeça. Os velhos ou falam pelos cotovelos ou são silenciosos. Sons de teclados, portas abrindo e fechando, espirro, tosses, cadeiras arrastadas. Balcão comprido, liso, pernas, pés, roupas, seios, pescoços, orelhas, mãos, cabelos carecas, óculos, teto, fios, ventiladores, ar condicionados, tomadas, lâmpadas, descargas...
                   75 O velhinho viu no monitor 75.

Marcolino não se mexeu. Alguém do seu lado o cutucou. Não é o senhor?   Era a professora gorda, que já havia contado a vida dela de frente e pra trás e de trás pra frente. O senhor mesmo! Vai anda se não perde a vez. O velhinho levantou-se com o susto. Sentiu-se um pouco tonto e se segurou  ao balcão para não cair. Quer ajuda disse a professora! Não devemos nos levantar assim de supetão. O velhinho foi devagar, arrastando os chinelos carcomidos  com a senha na mão. Entregou a mulher de óculos. Ela o Abriu sobre a mesa. Confirmou assinaturas. Pegou a pasta e olhou documentos por documentos. Agora sim seu Marcolino, entregou ao velhinho um papel com um número de protocolo, agora é só esperar, que dentro de três meses, o senhor receberá uma correspondência confirmando.

O velhinho ficou um pouco a ver navios, parado no balcão. A companhia chama o 76. Ele levantou-se quer agradecer, mas a voz não sai, e sai calado, até a casa é muito chão, pensou, devo guardar toda a energia.

Chegou quando escurecia. Fez um novo café. Tomou em goles largos, gostosos. Pudim roçava suas pernas. Saiu e sentou-se no banco, com a vista para o mar. Era como uma paisagem morta. Longe, tão longe que não ouvia a gaivota, nem as ondas, nem o cheiro. Era uma cena de filme mudo. Ficou assim a noite inteira. Parado, olhando o espaço entre o mar e o céu, o céu e o mar, algumas estrelas, as luzes da cidade, pontos brilhantes, céu no chão na imensa noite profunda.

                                                                  ***

Três longos meses e um papel timbrado, quase em branco, passou de mão em mão nas repartições, sendo carimbado, autenticado, aprovado e agora andava numa bolsa sacolejando, subia o morro, e foi ao seu destino.
 O carteiro gritou: Sr Marcolino de Andrade Silva! 
 Nada. ninguém responde. Assovia. Repete mais alto :Senhor Marcolino de Andrade Silva! Esperou. Escutou um rosnado. Fraco,. Curioso empurrei a porta com o pé.

Seu Marcolino estava deitado no estrado, mãos sobre o peito, rígido, inerte.  Será?  Depois de tanta espera? Toda vez que eu passava ele perguntava: Alguma coisa para mim?  Liga para o 190. Do outro lado da linha? O que aconteceu?

Eu vim entregar uma correspondência  no número 173... Sabe... Acho que tudo que eu andei pensando foi como aconteceu...e o velho, senhor Marcolino ... Sabe? O velhinho catador de papelão? Acho que o velho está...  à caminho do éden.


sexta-feira, 8 de julho de 2016

Que??

Quem nessa vida atribulado do dia a dia já não pensou que a vida poderia ser um sonho?  Foi aí que eu tentei criar algo nesse sentido. Eis:




Que??



De onde viemos?
Para onde vamos?
Quanto viveremos?
Quando morreremos?
Como viveremos?
O pesadelo de sentir medo,
Medo da dor
Nossas fraquezas,
Pesadelo, doído
E a alma ia
E ia
A sonhar
Sonho doce, doce sonho
Sonho noutro sonho,
Vida noutra vida
E o maior receio
Era acordar
Pois
Pensava desse jeito:
Que se a vida fosse inteira,
Um sonho só,
Que o ato de acordar dava dó
Imagens alucinantes
Filme sem fim
Trem nos trilhos,
Eternamente insano,
Personagens tantos,
Anjos tortos e arcanjos,
Anjos profanos,
Diabinhos viris,
Sonho... Sonho...
Deus, criação de nossos medos
E a vidas se fez,
Eternamente um sonho,
A vida da gente.



quinta-feira, 30 de junho de 2016

Raio X



Raios-X


Sou água quieta de um lago,
Leve roçar distende ondas
As margens encrespadas
Poros e pele e pelos e pênis
Um metro e sessenta e quatro,
Minha ossatura
De homo sapiens
Olhos castanhos claros,
Claros e tristes,
Triste sina de ser humano
Coração que não cabe no peito,
Genes de dois gêneros
Masculino e feminino,
Xis e ípsilon
Sou quieto, calado, casmurro.
Jeitão do interior,
Simples e humilde
Vivente metódico metudo,
Medo da morte, medo da sorte,
Até medo de ser feliz.



Exórdio

               
                                             


                                                                         Exórdio


A obra até chegar a ficar pronta é necessário o artista dá-se por satisfeito e concluí-la, e nesse longo percurso passa por mil conjecturas, edições e cortes.  Isso qualquer obra. O restante é atirado à lixeira sem culpa.

 Acredita-se que na feitura de uma obra perdem-se aproximadamente noventa por cento do que se anotou em suor e lágrima. Não se especulou a causa, mas creio que além de motivos estéticos, há os motivos humanos: orgulho, vaidade, medo de se desnudar, medo disso e medo daquilo.
Como já dizia Drummond em sua poesia “Congresso internacional do medo”


“...existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”.

E o medo da folha em branco? E após as letras?

Verdade é que a lixeira recebe mais dos autores.
Aí pensei com meus botões:

Já imaginaram o romance “Crime e castigo” de Dostoiévski com suas mais de novecentas laudas, quanto de Raskólnikov ele não teve que atirar ao lixo? (Aqui pesquisei e soube que ele ganhava por lauda escrita então como dizem “O buraco era mais embaixo, não deve ter sobrado tanto assim, pois era questão de sobrevivência”).
E quem não é sobrevivente?
E mesmo ele sendo um autor prolixo (aqui não use o sinônimo de enfadonho e sim denso), que era, cortou muita coisa para que sua obra desse o resultado que admiramos.  Obra fantástica.
Já pensou a lixeira de um Fernando pessoa e seus heterônimos? Quantas batalhas entre eles?
De Kafka quando escreveu A metamorfose. Compreenderíamos tudo? Chegaríamos ao fio da meada? A planta baixa como disse bem Autran Dourado no seu livro “Poética de romance matéria de carpintaria”, ou Rubem Fonseca que pensamos que aquelas coisas densas que escreve saem normalmente e vem assim em novelo, frase atrás de frase.
E tantas outras obras importantes. Quanto valeria tais lixeiras? Não tenho a mínima ideia. Só sei que tais sobejos, seriam valiosíssimas para sabermos como de uma pedra bruta saem os diamantes. Ou não.

Há autores virtuosos que diz em carta, que  sua obra poderia ser jogada toda no lixo que foram erros imperdoáveis da juventude ou outro que só foi publicado após sua morte  contrariado  por seu secretário  pois seu sonho inicial era atirar tudo ao fogo. Mas ainda bem que se conteve e a publicou.  Sucesso total.

Então a lixeira como a chamarei nada mais será do que o local onde jogarei meus dejetos, obras que chegaram ao quase, quase conto, quase romance quase poesia.
 Tudo que tentei criar e não deu certo.  Será um depósito de coisas vulgares, pequenas ilusões. Masturbações embaixo do chuveiro. Escritos que não emprenharam. Feridas imundas. Meu lixo. O lixo que todo ser vivente tem guardados no lado sombrio da alma. É aquela coisa de Deus e o diabo, a sombra e a luz, O branco e o negro.  Um depende do outro e vice versa. Herói e vilão.

          -Orgulho! Vaidade! Sobriedade! Bêbado! Escracho! Descabimento! Impossível! Quer se comparar!
          -Não! Não e Não! Respondo veementemente a minha sombra. Meu subconsciente, o crítico.

Aliás os críticos que se contenham, pois já tenho tal personagem em mim que não me deixa voar. Quero ser livre. Livre! De todas as mazelas. Preconceito,  moral,  escola, influencias...

Se fossem me conceituar num desenho seria uma pintura em nanquim onde estaria uma árvore frondosa e alada. Suas raízes na superfície como garras segurando-me ao chão enquanto as asas batendo forte no afã do voo e meu rosto contraído demonstrando luta e dor. Alguns frutos informes.  Os verdes, sem aroma, os pássaros não os rodeiam. Os podres pelo chão germinando.  As raízes me prendem ao normal. As asas a tentativa de fuga, do lugar comum, em busca da musa, o estágio perto da criação, parecido com a loucura. Na base do desenho a terra, a mãe, leito final.

 Existem dois insetos contra a obra de arte.  A traça e o crítico. A primeira, a traça, eu creio que qualquer tribunal de primeira instância a inocentaria. Nos autos a causa seria famélica. Elas adoram um papel. Já o crítico esse sim, sem perdão, pois destrói a obra por simples inveja. E inveja todo mundo sabe, é pecado capital. Conheço autores que usaram bem dos críticos  e a dose que era para matar os engordou e suas obras tornaram-se Best Sellers

A decisão de expor minha lixeira, - feridas fétidas, foi pura e simplesmente pela modernidade. Hoje a ordem é reciclar tudo para não poluir o meio ambiente. E há estudos científicos que os nossos dejetos podem se transformar em energia.

Aos que lerem alguma coisa por aqui, ajudarão, pois é só com vossas conivências e cumplicidades, que a obra se completa, mesmo sendo algo abstrato, indelével e invisível, é primordial, o sentimento pois é em vossas mentes que despertamos o que queremos. Vós sois espelhos de nós mesmo.
E como disse Machado de Assis: se eu arrebanhar um leitor apenas já me sinto satisfeito.

1 de julho de 2016